- junho 12, 2025
Um alerta contra comparações equivocadas na segurança pública

A discussão sobre equiparação ou isonomia salarial entre servidores públicos de carreiras distintas, ainda que pertencentes ao mesmo ramo de atuação estatal, frequentemente ressurge no cenário político e sindical. No entanto, essa proposta, além de juridicamente insustentável, revela um perigoso desconhecimento da natureza e estrutura das carreiras públicas, especialmente no que se refere à segurança pública.
Recentemente, em Mato Grosso, ganhou força uma narrativa que defende a equiparação entre as carreiras da Polícia Militar e da Polícia Civil sob o argumento de que ambas integram o mesmo ramo da administração — a segurança pública — e enfrentam riscos semelhantes na linha de frente do combate ao crime. Ocorre que tal argumentação peca por sua superficialidade e fere princípios constitucionais elementares, em especial o da legalidade, da hierarquia administrativa e da autonomia das carreiras públicas.
A Constituição Federal é clara ao estabelecer que os cargos públicos devem ser organizados conforme sua natureza, complexidade, requisitos de ingresso e atribuições específicas (art. 39, §1º, CF). Equiparar vencimentos apenas por analogia funcional, sem observar essas distinções, configura violação ao princípio da isonomia, justamente por tratar de forma igual os que são, na essência, desiguais.
No caso da Polícia Militar do Estado de Mato Grosso, trata-se de uma carreira hierarquizada e castrense, com 14 postos ou graduações, que incluem desde soldados até coronéis. Já a Polícia Civil estrutura-se em três cargos típicos de Estado: investigador, escrivão e delegado, todos com requisitos de nível superior e cujas atribuições exigem, além da atuação operacional, competências técnico-jurídicas e científicas. Essa diferença estrutural e funcional impede qualquer paralelismo remuneratório automático entre as duas corporações.
Para ilustrar a incoerência dessa comparação, tomemos o exemplo do ramo da construção civil. É inegável que o ajudante de pedreiro, o pedreiro e o eletricista estão na linha de frente da obra e enfrentam riscos físicos consideráveis. Contudo, nem por isso possuem remuneração equiparada à de um engenheiro civil ou de um arquiteto, que ocupam funções estratégicas, de responsabilidade técnica e exigem formação acadêmica superior. O mesmo se verifica na área da saúde: técnicos de enfermagem e enfermeiros realizam atendimentos emergenciais, muitas vezes com carga horária exaustiva e exposição direta a riscos biológicos. Ainda assim, seus salários não se equiparam ao dos médicos, cuja formação, responsabilidade legal e atribuições são substancialmente distintas.
Defender isonomia salarial entre cargos distintos, ainda que sob a retórica do “risco compartilhado”, significa ignorar a organização racional do serviço público, fragilizar a meritocracia e comprometer a responsabilidade fiscal do Estado. É dever dos gestores e legisladores respeitar a natureza jurídica e técnica de cada carreira pública, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade e promover uma desorganização remuneratória que poderá repercutir em outras áreas sensíveis da administração pública.
É preciso reconhecer, sim, o valor de todas as funções dentro do serviço público — especialmente as de maior periculosidade —, mas sem perder de vista que reconhecimento não é sinônimo de equiparação automática. Cada carreira tem sua razão de ser, sua exigência de formação, seu grau de complexidade e de responsabilidade e sua trajetória própria. Tentar equiparar à força, por conveniência política ou pressão corporativa, é desfigurar o próprio Estado.
*Gláucio Castañon é presidente do Sindicato dos Policiais Civis do Estado de Mato Grosso, bacharel em direito, especialista em Inteligência de Segurança Pública e Direito Penal.