• junho 5, 2020

Um sufocado grito de socorro

Um sufocado grito de socorro

*GLÁUCIO DE ABREU CASTAÑON

Inicio este artigo com uma pequena reflexão: se é o Estado quem faz as Leis como pode ele ser o primeiro a descumpri-las? O modelo político tripartite, composto pelos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, independentes e harmônicos entre si, caracterizando o Estado Democrático de Direito, funcionaria como uma engrenagem perfeita, pelo menos, na visão de seu idealizador, o filósofo e político francês Charles Montesquieu (1689 a 1755).

Robustece esse princípio, o chamado sistema de freios e contrapesos, o qual estabelece que os três Poderes se controlem reciprocamente, ou seja, a atividade do Executivo é limitada pelos atos do Legislativo e as atividades de ambos estão submetidas à ação jurisdicional do Judiciário.

Grosso modo, cabe ao Executivo administrar o Estado de acordo as normas e Leis vigentes no país. Ao Legislativo cabe criar e aprovar as leis e fiscalizar o Executivo, já ao Judiciário cabe interpretar as leis e julgar de acordo com a constituição e leis criadas pelo Legislativo.

Em tese, a Administração (Executivo) tem o poder-dever de cumprir as leis emanadas pelo Legislativo, porém o que se tem observado é que o governo estadual tem reiteradamente descumprido esse dever, principalmente em relação as leis orgânicas das instituições, cuja propositura (texto da lei) é de iniciativa do próprio Executivo.

A Lei Complementar 407 de 30 de junho de 2010 (Estatuto da Polícia Judiciária Civil), a qual prevê atribuições, deveres, obrigações e direitos dos servidores, é sistematicamente vilipendiada pelo Executivo (Secretaria de Segurança Pública e Polícia Judiciária Civil).

Dentre os direitos dos policiais civis que são desprezados e negados pelo Estado estão o fornecimento de alimentação para policiais que trabalham em regime de plantão (art. 304), pagamento de diárias para deslocamento fora da sede do município (art. 176, III c/c art. 181), pagamento de horas extraordinárias (art. 174, III), carga horária não superior a 40 horas semanais (art. 173, I), ajuda de custo para locais de difícil acesso (176, II c/c arts. 182 e 183), indenização por atividade em local de difícil acesso (art. 176, IV), Indenização por atividades especiais (art. 176, V).

Não bastassem os direitos ilegalmente negados, os investigadores de polícia ainda são submetidos a diversos desvios de função, como na guarda de presos em delegacias e acompanhamento e vigilância de presos em audiência de custódia (função da Polícia Penal) e práticas de atos exclusivos ou privativos de delegados e escrivães, além do cumprimento de escala ilegal de sobreaviso.

Não menos grave é a falta de pagamento da Revisão Geral Anual, instituída para repor as perdas inflacionárias, mas que foi propositalmente “satanizada” pelo governo através da sigla RGA, jogando a população contra os servidores públicos.

Deve-se aclarar que o direito a recomposição das perdas salariais, além de ter previsão na Constituição Federal (art. 37, X), tem previsão na Constituição Estadual (art. 147) e regulamentação na Lei 8278 de 30 de dezembro de 2004.

Seguindo o sistema tripartite de Montesquieu conjugado com a doutrina dos pesos e contra-pesos, seria fácil entender, que, se o Legislativo fez e/ou aprovou as Leis e o Executivo descumpriu, o Judiciário aplicaria a justiça ao caso concreto, porém não é difícil perceber que entre o ser e o dever-ser, existe um abismo colossal.

Nos últimos anos, inúmeras matérias jornalísticas relatam decisões judiciais contrárias aos pleitos sindicais, referentes ao pagamento da Revisão Geral Anual. Da mesma forma, se tornou comum (quase regra) o indeferimento de petições do sindicato dos investigadores relacionadas ao cumprimento da Lei Complementar 407/2010.

Dentre essas ações pode-se citar: ação que visa obrigar o Estado a fornecer alimentação aos policiais plantonistas; ação para obrigar o Estado a pagar diárias para deslocamento, antes da viagem, para que assim o policial possa se hospedar e se alimentar; ação para sustar portarias que obrigam policiais a cumprir escala de sobreaviso sem previsão legal.

Dentre as várias negativas judiciais, destacam-se como preocupantes o indeferimento de duas ações voltadas para a segurança e saúde dos policiais durante a pandemia covid-19. Na primeira ação o Sindicato dos Investigadores solicitou que o Estado fosse obrigado a fornecer equipamentos de proteção individual aos policiais, já que não podem interromper seu trabalho, por desempenharem atividades essenciais, exclusiva de Estado; já a segunda pleiteou o fornecimento de testes para todos os policiais a fim de evitar a proliferação do vírus e garantir a saúde e a segurança, tanto dos policiais, quanto dos cidadãos que procuram as delegacias.

Com a omissão do Estado, coincidentemente aumentou drasticamente o número de policiais civis contaminados pela covid-19, porém, como é pacífico, decisão judicial se discute nos autos e assim deve ser feito.

Voltando a reflexão inicial, surge nova duvida: se o “Estado Executivo” descumpre as leis que o “Estado Legislativo” criou e o “Estado Judiciário” não garante o restabelecimento do direito lesado, a quem devemos pedir socorro?

A resposta seria recorrer ao direito constitucional e democrático da greve, no entanto, no ano de 2017 o Supremo Tribunal Federal decidiu que “o exercício do direito de greve, sob qualquer forma ou modalidade, é vedado aos policiais civis e a todos os servidores públicos que atuem diretamente na área de segurança pública”.

Enfim chega-se a uma conclusão lógica, o grito de socorro encontra-se sufocado e os policiais civis “estão num mato sem cachorro”.

*GLÁUCIO DE ABREU CASTAÑON é Presidente (em exercício) do Sindicato dos Investigadores de Polícia de MT, Bacharel em Direito, Licenciado em Letras, Especialista em Direito Penal e em Inteligência de Segurança Pública.

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